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  • Marina Vasconcellos

Posso “não gostar” dos meus próprios pais?

Publicado no Minha Saúde Online em 7/9/2014



Não raro recebo em meu consultório e vejo por aí casos onde a pessoa sente-se “culpada” por não gostar dos pais, como se o fato de serem os progenitores garantisse àqueles o direito ao amor e respeito incondicional de seus filhos. Ledo engano.


Elisabeth Badinter faz uma boa análise em seu livro “Um Amor Conquistado – o mito do amor materno” (Ed. Nova Fronteira, 1985): “Quanto a mim, estou convencida de que o amor materno existe desde a origem dos tempos, mas não penso que exista necessariamente em todas as mulheres, nem mesmo que a espécie só sobreviva a ele.


Primeiro, qualquer pessoa que não a mãe (o pai, a ama, etc.) pode ‘maternar’ uma criança.

Segundo, não é só o amor que leva a mulher a cumprir seus ‘deveres maternais’. A moral, os valores sociais, ou religiosos, podem ser incitadores tão poderosos quanto o desejo da mãe.” Concordo com esta afirmação, e acrescentaria o amor paterno na mesma categoria. Nem todos são preparados emocionalmente para desenvolver os papeis de pai e mãe, e os filhos arcam com as consequências.


A sociedade, assim como as religiões e diferentes culturas pelo mundo afora, ensina que temos que respeitar e amar nossos pais; afinal, eles nos criaram, alimentaram, educaram, sustentaram... e devemos lhes retribuir todo o trabalho e dedicação no mínimo com o reconhecimento e o amor devidos. Porém, há pais que literalmente não fazem por merecer, e o melhor seria que saíssem de perto dos filhos, já que a convivência apenas causa traumas emocionais e prejudica o desenvolvimento saudável dos rebentos.


Há pessoas doentes que se recusam a buscar tratamento para seus distúrbios, em especial os psiquiátricos. Filhos ficam sujeitos a maus tratos, violência física e psicológica, humilhações, chantagens emocionais, exposições da intimidade para outras pessoas, vergonha de escândalos em público... Tudo isso pode ser causado tanto por pessoas simplesmente mal educadas e grosseiras, como por aquelas doentes, vítimas de algum distúrbio não diagnosticado e, consequentemente, não tratado.


Recusam-se a buscar tratamento, mesmo sendo avisadas pelos parentes e amigos próximos, com o velho argumento em sua defesa: “Não sou louco para fazer terapia”. Se for o caso de psiquiatra, então, o preconceito aumenta. Sofrem anos a fio e levam toda a família junto nessa batalha, provocando brigas e frequentes conflitos quando tudo isso poderia ser evitado, ou solucionado, caso seguisse um tratamento adequado. Encaixam-se nesses casos os alcoólatras, psicóticos, portadores de TOC (Transtorno Obsessivo Compulsivo), neuróticos graves, bipolares, entre outros.

Mesmo sem serem portadores de doenças psiquiátricas, aqueles pais que traem seguidamente o cônjuge provocando sofrimento a este também se distanciam dos filhos, que alimentam por ele raiva, revolta e repulsa muitas vezes. Outros inúmeros comportamentos inadequados, posturas perante a vida e as pessoas, assim como valores morais absolutamente questionáveis provocam nos filhos sentimentos negativos em relação aos pais.


Sem falar nos psicopatas, arredios a qualquer tratamento e sem “cura” por se tratar de um transtorno de personalidade, e não de uma doença. Frios, incapazes de sentir algo e de desenvolver a empatia, não pensam duas vezes antes de prejudicar quem quer que esteja ao seu lado, sempre pensando no que irão ganhar com suas ações interesseiras, manipuladoras e maquiavélicas. Sendo assim, não desenvolvem qualquer relação afetiva com os filhos, permanecendo indiferentes a eles.


O resultado disso tudo é que o vínculo com os filhos fica extremamente prejudicado, muitas vezes nem tendo força para ser construído. As crianças crescem convivendo com pais agressivos e abusadores, não vendo a hora de se livrarem desse ambiente doentio e conflituoso. Guardam consigo a sensação de culpa por não gostarem dos pais, sofrendo sozinhos anos a fio por não terem coragem de admitir para si mesmo e para os outros tal sentimento. “Como não gostar do(a) meu(minha) próprio(a) pai(mãe)? Não é errado isso? Afinal, é meu(minha)/pai(mãe)!!”


Não, não é errado isso. Se o vínculo afetivo não foi construído e alimentado devidamente, o amor não cresce. Não precisa procurar justificativas que amenizem para si e para os outros certas atitudes dos pais que o envergonham, humilham ou agridem. Eles são humanos e passíveis de erro, como qualquer um.


A diferença entre pais saudáveis e doentes é que os primeiros, ao perceberem que erraram, tentam se desculpar e melhorar, não tendo problemas em voltar atrás em opiniões ou decisões equivocadas. Procuram evoluir e aprender com os erros. Já os outros não têm essa capacidade, persistindo no erro e muitas vezes manipulando os filhos para que estes, sim, sintam-se culpados por questionarem certas atitudes.


Nesses casos todos, o melhor a se fazer é manter a “distância afetiva” dos pais, ou seja, desenvolver-se emocionalmente independente do que eles possam dar em troca, e não esperar um amor que não existe. Muitas vezes a distância física também é recomendada: que o convívio com eles seja o mínimo possível para evitar situações de estresse emocional que certamente ocorrerão.


E isso só é possível se alcançar com a ajuda de um bom trabalho psicoterapêutico, onde a pessoa se aproprie de seu potencial e desenvolva a independência afetiva, elaborando a culpa advinda desse processo todo. Afinal, não é fácil assumir que seus pais fazem mal a você: nem para si próprio, muito menos para os outros.


Quando a pessoa se permite exprimir os sentimentos negativos que alimenta pelos progenitores, apropriando-se deles e entendendo de onde surgiram, como foram construídos, resultado de anos de convivência com uma pessoa sem condições psicológicas necessárias para o bom desempenho do papel de pai/mãe, há uma grande sensação de alívio e libertação emocional.

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