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  • Marina Vasconcellos

Falando sobre questões de gênero e preconceito

Coloque-se no lugar daqueles que sofrem o preconceito e repense sua postura


Publicado no Minha Saúde Online, 01/09/2015

Cada vez mais ouvimos falar das novas configurações de relações ao nosso redor, envolvendo questões de gênero: casais homossexuais assumidos que se casam finalmente perante a lei; transexuais que conseguem o direito a operações para mudança de sexo e uma nova carteira de identidade; pessoas que se assumem homossexuais após anos vivendo num casamento hetero, inclusive com filhos; bissexuais que procuram terapia para entender porque necessitam se relacionar com os dois sexos, sentindo desejo por ambos, e por aí vai.


Infelizmente ainda temos que lidar com o preconceito enorme que envolve essas pessoas, já que pertencemos a uma cultura de padrões pré-estabelecidos bastante refratária a qualquer fato que envolva o repensar esses padrões, entender as diferenças e respeitá-las como tais, incluindo naturalmente essas pessoas em nosso meio.

Vejo que, além do preconceito, faltam informações às pessoas que taxam os diferentes de si como “errados”, “perversos”, “aberrações da natureza”.


Minha intenção aqui não é dar uma aula sobre as diferentes possibilidades de opções sexuais ou identidade de gênero, pois isso é possível encontrar com detalhes em literaturas científicas existentes (destaco o livro: “Os onze sexos – as múltiplas faces da sexualidade humana”, de Ronaldo Pamplona da Costa, Ed. Gente).


Pretendo convidá-lo, caro leitor, a colocar-se no lugar daqueles que sofrem o preconceito para que repense sua postura antes de julgá-los erroneamente.


Para tanto, cabem aqui algumas explicações básicas fundamentais da nomenclatura utilizada a fim de ajudá-lo na compreensão desse assunto tão complexo: identidade de gênero é a sensação interna de ser homem ou mulher; orientação sexual é o aspecto da identidade que faz com que nos liguemos ao feminino ou ao masculino, hetero/homo/bissexual; papel de gênero é nosso comportamento frente às pessoas e à sociedade como um todo – temos um jeito de ser masculino ou feminino; papel sexual é privativo, feito entre quatro paredes, não diz respeito a ninguém além da própria pessoa – hetero/homo/bi. As pessoas conseguem modificar seu papel sexual, mas não sua identidade.


Sabe-se hoje, através de estudos comprovados cientificamente, que a identidade e a orientação sexual são definidas ainda no estágio intrauterino do feto. Especificamente entre a sétima e décima oitava semana após a concepção, acontece um desequilíbrio na dose do hormônio masculino enviado ao feto – a testosterona -, fato este responsável pela definição da estrutura cerebral no Sistema Nervoso Central (SNC) ligada a orientação sexual e a identidade de gênero no cérebro em desenvolvimento.


Não há tratamento para alterar esse fato ao longo da vida, as pessoas já nascem com a identidade de gênero e o papel sexual definido, não sendo uma escolha sua ou resultado da forma como foi criada. Aqui vale mais uma sugestão de leitura: “Por que os homens fazem sexo e as mulheres fazem amor? – uma visão científica (e bem humorada) de nossas diferenças” (Allan e Barbara Pease – Ed. Sextante).


Nunca me esquecerei da fala de um cliente há alguns anos, argumentando sobre sua condição de homossexual: “As pessoas acham que a gente escolhe ser assim. Elas não têm noção do que dizem. Se eu tivesse escolha, acha que eu optaria por levar uma vida assim tão mais difícil, não podendo assumir minha relação afetiva com alguém em público, sofrendo com o preconceito todos os dias, fazendo meus familiares sofrerem por medo de que algo me aconteça (referindo-se aos ataques a gays frequentes em São Paulo), tendo que frequentar ‘guetos gays’ porque só lá as pessoas se entendem e se aceitam como são? Eu não tive e não tenho escolha, nasci assim e sou assim!”.


Homossexuais, tanto masculinos quanto femininos, são aqueles que têm como objeto de amor e desejo pessoas do mesmo sexo. A orientação afetivo-sexual do homem é para outro homem, assim como a da mulher. Eles não têm problemas com sua identidade de gênero que bate com seu corpo biológico, ou seja, os homens sentem-se bem com seu corpo masculino e as mulheres, idem. Apenas escolhem para se relacionar afetivamente alguém do mesmo sexo.


Os bissexuais nascem com o corpo biológico macho ou fêmea perfeito, ou seja, o homem sente-se homem, e a mulher sente-se mulher (assim como os homo e os heterossexuais). Porém, na idade adulta sentem a necessidade de manter relações afetivas e sexuais com ambos os sexos para sentirem-se plenos, algo que vai além de seu controle.


É comum aqui, por exemplo, homens que se casam com mulheres, têm filhos, e com o tempo acabam procurando uma relação homossexual fora do casamento para se sentirem plenos, mantendo em segredo essa segunda união, já que muitas mulheres não aceitariam saber que dividem seu homem com outro homem. Eles são felizes em sua união hetero, conseguem manter relações sexuais com a esposa (embora não seja sua primeira opção…), realizam-se com a paternidade e a vida em família, mas têm a necessidade da união com outro homem para se sentirem completos. O mesmo se aplica às mulheres.


O travesti tem uma identidade de gênero dupla, sente-se homem e mulher. No caso do travesti masculino, por exemplo, ele sabe que biologicamente é um homem, foi criado socialmente como tal e não deseja eliminar seu órgão sexual (o pênis), embora muitos acabem por exagerar em suas vestimentas, carreguem na maquiagem e nos trejeitos justamente por se sentirem também femininos. Difícil conviver com essa dualidade eterna.


Os transexuais são almas femininas aprisionadas em corpos masculinos e vice versa, nas palavras de Ronaldo Pamplona. É como se a pessoa nascesse num corpo trocado, que não lhe pertence. As mulheres sentem-se homens, desde o nascimento, e não conseguem se adaptar àquele corpo com seios, vagina e que menstrua. Precisam adaptar o corpo àquilo que sentem psicologicamente, que contradiz o biológico, daí a necessidade das operações para mudança de sexo e tratamentos com hormônios para o resto da vida. O mesmo acontece com os homens.


Agora, imagine-se na seguinte situação: você possui uma filha que desde bem pequena não gostava de usar os lindos vestidos que ganhava, ficava emburrada quando tinha que se arrumar para festinhas de amigas da escola e ia de mau humor, contrariada. Não gostava de brincar com bonecas, preferindo os videogames de carros e lutas do irmão mais velho. Ao chegar à adolescência passa a ficar insuportável, evita festas, tranca-se no quarto para evitar o convívio com amigos e familiares, recusa-se a colocar roupas femininas mesmo em ocasiões onde todas as mulheres se arrumam (casamentos de familiares, por exemplo), deixando os pais desconcertados com tal displicência em sua vestimenta. De repente, aos 15 anos, sofrendo de depressão e indo mal na escola, resolve contar aos pais que ela não se sente como uma menina, mas sim, um menino aprisionado num corpo feminino.


Imagine que você é a mãe ou o pai dessa menina. O que fazer? Como reagir? Qual o caminho a seguir? E o sonho de um dia vê-la se casar e ter filhos… o que fazer com tal frustração? Como lidar com tamanho sofrimento?


Esse é um caso de transexualismo. O caminho a seguir é longo e dolorido: busca por tratamentos adequados e especializados; locais confiáveis para acolherem tanto o trans quanto a família, que também precisará de apoio para aprender a lidar com a situação e aceitá-la como tal; enfrentamento do preconceito por parte dos familiares, amigos e sociedade em geral; mudança da fisionomia da menina que passa a se transformar num menino (com a ingestão de hormônios vai desenvolver caracteres masculinos como pelos pelo corpo, barba, a voz engrossa), e todos terão que se acostumar a chamá-lo pelo novo nome escolhido de homem; adaptação de todas as roupas, sapatos e decoração do quarto; provavelmente terá que mudar de escola para evitar o bullying e a exposição da(o) menina(o) aos colegas e professores.


E o tratamento deve envolver psicólogo, psiquiatra, endocrinologista, nutricionista, ginecologista, de preferência formando uma rede interdisciplinar onde os profissionais possam se conversar a respeito do andamento do tratamento.


Mas, mesmo com tudo isso em jogo, de repente a menina chata e mal humorada que se isolava e evitava as pessoas, tanto em casa quanto na escola, transforma-se num menino dócil, inteligente e de fácil convívio, pois finalmente sente-se compreendido e visto como um homem pelas pessoas, como sempre se sentiu internamente – sua identidade de gênero sempre fora masculina.


Conseguiu imaginar a situação? E mais: é para o resto da vida! Os hormônios deverão ser ingeridos com controles adequados de tempos em tempos, pois senão os caracteres femininos podem voltar (seios, menstruação, pelos, voz…). Um número pequeno deles consegue fazer a operação para mudança de sexo, após longo tratamento e a idade mínima de 21 anos, retirando os órgãos reprodutores femininos (útero, trompas e ovários), seios (mastectomia) e realizando a implantação de uma prótese peniana. Aí sim o quadro se completa, e ele pode sentir-se um homem completo.


Insisto em trazer aqui o sofrimento que envolve todo esse processo nada fácil para as pessoas que passam por isso. Trouxe um exemplo de transexual por considerar o transtorno mais difícil de lidar, dentre todos os outros, por envolver a mudança física da pessoa, além dos aspectos psicológicos.


Mas e os outros? O que uma mãe ou pai de um homossexual imagina que faz a seu filho quando o renega ao saber de sua opção sexual? Por acaso acha que ele escolheu ser assim só para ser a “ovelha negra” ou o “causador” da família? Só para “chamar a atenção”? Já ouvi declarações do tipo: “Preferia que ele estivesse morto a ter que aceitá-lo nessa condição”- o cúmulo da falta de empatia, do preconceito, do egoísmo e da falta de desenvolvimento tanto emocional quanto espiritual.


Imagine-se na situação de um homossexual que nasce numa família preconceituosa e sabe que será um grande baque assumir sua verdadeira identidade dentro de casa, prevendo reações de desprezo, agressões ou rejeição por parte dos familiares. Você pode passar a vida inteira “escondendo” seu verdadeiro eu para não decepcionar as pessoas que ama, ao mesmo tempo em que não se permite ser feliz experimentando uma relação afetiva com quem gostaria. Pode casar e ter filhos só para corresponder às expectativas da maioria da sociedade, mas certamente viverá infeliz por não querer estar ali. Se tiver coragem, um dia se separa e sai em busca de sua realização pessoal. Caso contrário passará a vida lidando com seus problemas emocionais e a enorme frustração de nunca se permitir assumir sua orientação sexual.Triste opção.


Essas pessoas nascem assim e muitas são plenamente felizes quando conseguem assumir sua opção sexual, sendo acolhidas normalmente pela sociedade. Bom seria se eles pudessem esquecer que são “diferentes”, não tendo que provar a todo o momento que são “normais” como qualquer um.


Seria muito mais fácil se a aceitação viesse em primeiro lugar de dentro de casa, dos pais e irmãos, dando o suporte necessário para que essas pessoas se sintam acolhidas e confiantes para lidar com o enfrentamento diário do preconceito muitas vezes velado dos outros na escola, no trabalho, no convívio social ou nos espaços públicos em geral.


Que tal fazer este exercício agora? Então vamos lá: coloque-se no lugar do outro.


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